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45º Encontro Anual da ANPOCS

GT 17 - Estudos Culturais: representações, mídias e artes

O pancadão enquanto prática cultural na produção do espaço urbano em


Campinas-SP

Autor: Daniel Brochado Pires1

19 a 27 de Outubro de 2021

1 Doutorando em Ciências Sociais, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, do Instituto de


Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Resumo

Entre os anos de 2013 e 2014, desenvolveu-se como forma de sociabilização em grandes


centros urbanos brasileiros, o uso de equipamentos coletivos, sejam privados ou públicos,
a manifestação dos chamados “rolezinhos” e “pancadões”. Estas manifestações
sintetizavam-se pelo encontro no cotidiano urbano de diversos jovens, através do
embricamento do funk enquanto prática cultural, do consumo de mercadorias enquanto
objeto de diferenciação, e do uso de territórios da cidade, até então, exclusivos para
determinados setores da sociedade de classes. O objeto do presente trabalho pretende
compreender portanto, o aspecto territorial de organização do “pancadão” na cidade de
Campinas-SP, revelando sua trajetória de conflitos e instruções normativas diante o
estado no que se refere ao uso do espaço urbano enquanto prática cultural de
sociabilização do cotidiano.
Palavras-chave: pancadão; produção do espaço; segregação; marginal; cultura urbana.

Introdução

Dentro do debate teórico e metodológico nas ciências sociais em geral, e na


sociologia em específico, o tema da cultura tem empregado uma série de disputas
epistemológicas marcadas por um processo de virada de significação (ainda em disputa)
durante as últimas décadas.
Cada vez mais, cultura deixa de se ser entendida restritivamente apenas como
linguagem simbólica imbuída da formulação espiritual, artística e criativa dos seres
humanos, para se compreender também como manifestação de socialização de formas de
vida compartilhadas e vinculadas às condições materiais da sociedade, sendo assim,
portanto, sujeitas aos conflitos inerentes na constituição de sua legitimação. Em outras
palavras, passamos de um processo de entendimento da cultura como um fenômeno
artístico elitista, pretensamente autônomo e autêntico; para uma significação de cultura
como um processo social que espelha e é espelhado pelas condições materiais da
sociedade em seu tempo histórico e que portanto amplia e complexifica sua
heterogeneidade de linguagens.
O trabalho que desenvolvemos a seguir se refere à um ponto específico retratado
no desenvolvimento do texto de qualificação da minha tese que aborda as consequências
da segregação socioespacial para a produção de manifestações culturais populares e
periféricas na cidade de Campinas-SP. Deste modo, os ponto aqui abordados, fazem parte
das primeiras impressões sobre uma dessas manifestações em específico e que
configuram como uma grande presença de territorialidade urbana: as territorialidades do
funk.
Nesse sentido, o tema desse paper se insere no campo de conhecimento dos
estudos culturais ao compreender a manifestação da cultura não por uma lógica de
neutralidade, abstração e autonomização, mas sim por uma significação prática imbuída
de conflitos, onde grupos sociais disputam espaços de legitimação. Essas disputas não se
encontram somente do ponto de vista simbólico de determinada linguagem cultural, mas
se cristalizam também nas relações econômicas, nas moralidades sociais, na disputa
territorial por produção do espaço.
Como forma de contribuir com pesquisas que abordam a cultura urbana
contemporânea no país, nosso objetivo se insere na investigação do processo de
desenvolvimento naquilo que consideramos que mais cristaliza o ambiente de disputa
cultural nos territórios nos dias atuais: o pancadão enquanto um fenômeno de
socialização e de disputas no ambiente da cidade, não somente enquanto estilo de vida e
gosto cultural, mas também de produção espacial.
A Lei Nº 14.862, conhecida como “Lei do Pancadão” criada em Campinas-SP no
ano de 2014 tem como intuito proibir e punir o uso de equipamentos de som que
ultrapassam determinado grau de decibéis nas vias e logradouros públicos (CAMPINAS,
2014). Tal instrumento normativo não aborda o gênero musical do denominado
“pancadão”, muito menos indica quais locais da cidade essas ocorrências se concentram,
o que notadamente permite parecer um recurso jurídico neutro e com extremo apoio da
sociedade. Porém, torna-se interessante notar que a aparência jurídica, tem uma essência
de conteúdo formulada num contexto histórico marcadamente conflituosa para setores da
sociedade: as manifestações culturais de ocupação de espaços públicos e coletivos por
jovens moradores das periferias sob a toada do estilo funk.
A problemática deste trabalho é analisar como o pancadão se estabelece como
elemento de produção espacial da cultura urbana contemporânea. Para isso, nos interessa
investigar especificamente o número de ocorrências do pancadão no território da cidade
de Campinas-SP, compreendendo as diferenças entre as regiões centrais e periféricas. Ao
desenvolvermos esse assunto, pretendemos contribuir com um campo de estudo que
possui uma relativa trajetória acumulada no meio acadêmico brasileiro: as que abordam
as manifestações periféricas atuais e suas contradições e organizações como elementos
positivos de autoafirmação de identidades. Nos afastamos assim, das interpretações
muito usais do senso comum que associam as práticas culturais periféricas à partir do
polo negativo, ou seja, marcando as como manifestações do crime, da barbárie, do atraso,
da vulgaridade.
Por outro lado, pontuamos que a produção espacial do funk, enquanto formato
dos pancadões, é uma expressão complexa que carrega elementos heterogêneos e
dissonantes, não sendo restritos portanto, a um tipo de análise reducionista e romântica.
Cabe, deste modo, realizar pesquisas sobre esse fenômeno cultural rotineiro nos grandes
centros urbanos, de modo a revelar suas contradições e o movimento de sua formação
histórica, inserindo esta manifestação no contexto político, econômico e social
vivenciado pelo país nos últimos anos.
Como forma de analisar a questão problema desta pesquisa, partiremos
primeiramente da análise da constituição do funk enquanto um gênero musical de
relevância social e territorial na produção do espaço urbano, principalmente, no
entendimento dos bailes enquanto pontos de convívio, lazer e valoração social
comunitária.
Posteriormente, abordo aspectos característicos do funk brasileiro na
contemporaneidade, o surgimento do funk ostentação enquanto lógica inserida na
ascensão econômica de setores das classes populares, a instituição dos rolezinhos
enquanto ação voltada para o consumo de equipamentos comerciais, como shoppings; e o
aparecimento dos chamados pancadões, como uso e ocupação do espaço público.
Logo em seguida, me insiro no trabalho mais empírico desse trabalho. Analiso o
mapa de ocorrências da Lei do Pancadão na cidade de Campinas, e como essa se
diferencia ou gera similitudes diante os territórios do município, marcada por um padrão
de segregação centro e periferia, principalmente, ao excluir do ponto de vista dos bens e
serviços o setor sudoeste da cidade.
Na parte seguinte do texto, desenvolveremos um debate mais teórico sobre a
lógica da marginalidade, da periferia, enquanto pressupostos do conflito cultural nas
cidades, compreendendo assim pontos importantes que os estudos culturais abordam,
principalmente em figuras como Raymond Williams e Stuart Hall.
Na conclusão, insiro minhas considerações finais, apontando interpretações sobre
a problemática e apontando caminhos futuros de eixos de pesquisa que demandariam
maiores abordagens para o entendimento de sua totalidade

O funk na produção do espaço urbano

A criminalização de expressões culturais nos territórios das cidades brasileiras


não é uma realidade recente. Florestan Fernandes (1965) coloca que na virada do século
XIX para o XX, no processo de expansão urbana de São Paulo, as elites da cidade,
representadas pelo intuito burguês de branqueamento elitista visando um ideal de
“civilidade” e “progresso”, reprimiram fortemente as manifestações culturais das
população negras, causando importante impacto sobre a negação da memória à herança
cultural popular negra e africana. Diversas medidas policialescas foram tomadas visando
“(…) impedir a ‘revivescência’, à noite, de ‘antigos usos’ que perturbariam o sossego e,
talvez o decoro da população branca” (FERNANDES, 1965, p.46).
Não somente as manifestações como jongo, capoeira, rodas, e outras de origem
rural seriam policiadas, mas o próprio samba, uma cultura urbana emergente à época de
industrialização, nos marcos da expansão territorial das grandes cidades, passou por um
ciclo de conflitos incessante com o estado e setores da sociedade. Para além de
compartilharem da semelhança de se serem linguagens musicais, de dança e religiosidade
relacionadas à população negra, em todas estas manifestações eram comuns também a
repressão vir por um recorte territorial. Em suma, era necessário para as burguesias
garantirem a tranquilidade do sono branco, em detrimento da violência simbólica e da
segregação socioespacial da população negra.
Esse desenvolvimento de produzir nas cidades um distanciamento territorial e
ideológico das manifestações culturais que poderiam causar qualquer rompimento ou
questionamento de disputa de espaço do ethos de dominação e presença burguesa, é uma
marca presente ainda nos dias atuais. Foi e ainda é assim com o hip-hop e o funk.
Importante pontuar que a tradição do pensamento modernista no Brasil está veiculada à
uma construção não conflitiva da identidade e do imaginário nacional. Isso pode ser
retratado, por exemplo, ao verificarmos que o funk e hip-hop se consolidam como
expressões veiculadas à imagem da violência, msd esse tom negativo não se encontrava
esboçada na geração anterior de tradição da MPB (HERSCHMANN, 2005) ou mesmo do
rock.
Ao mesmo tempo então que as elites criaram mecanismos de marginalização de
práticas sociais e culturais populares, produzindo territórios e equipamentos elitizados,
valorizando determinadas expressões culturais, privilegiando a memória e o patrimônio
da história dos colonizadores e dominadores; as classes trabalhadoras e periféricas,
também produziam seus espaços de resistência. No Brasil as classes populares sempre
produziram suas manifestações culturais no espaço, como subterfúgio político
(PINHEIRO-MACHADO; SCALCO, 2014). O conflito social se emerge como uma
fenômeno inerente no espaço urbano para transformação social da realidade concreta
(ALMEIDA; MANTELLI, 2011). E com o funk a história não é diferente.
O funk brasileiro, se elaborarmos sua gênese de forma abreviada, é iniciado no
Rio de Janeiro e tem sua origem criativa na música negra estadounidense, em sua longa
trajetória de linguagens que ao transcorrer do tempo incorporaram, criaram e atribuíram
ritmos, poesia e mercados diferenciados. Podemos citar o blues, posteriormente o Rhythn
& Blues, a música gospel, o soul, e a passagem desses subgêneros musicais, a partir de
1968, para o termo Black Music, momento em que o funk surge na cena como estilo de
vida da população negra, sendo portanto uma forma de orgulho, carregando em sua
camada musical um som mais pesado, mais marcado que os gêneros musicais anteriores
(VIANNA, 2014).
Quando o funk chega ao Brasil, ele se hibridiza com uma série de influências
musicais, incorporando batidas de samba, capoeira, jongo e do ponto de vista de sua
manifestação e consumo2 cultural ele rapidamente se territorializa no subúrbio carioca
(VAL; OLIVEIRA, 2016). Os bailes black, paulatinamente foram incluindo em seu
repertório musical, o pop dançante, e atribuindo as novidades dos sucessos comerciais
dos Estados Unidos principalmente do funk e do rap.
Notamos portanto que sua origem tem uma complexa rede de circulação global,
oriundos da música negra dos Estados Unidos e da Jamaica, tomando novas formas
estéticas com as influências locais. Esse paradoxo global-local é uma relação que o funk

2 Consumo aqui entendido não estritamente do ponto de vista econômico, mas sim do ponto de vista
também simbólico, ou seja, ao se estabelecer uma cadeia de produção imaterial há uma estrutura de
circulação, e o consumo seria exatamente o momento de acesso e contato do público com o referido
objeto cultural produzido.
carrega desde sua constituição, embora tenha-se um entendimento muito constante que o
funk tenha uma origem quase orgânica nos morros do Rio De Janeiro, o que precisamos
exaltar de fato é que seu espaço de circulação cultural se deu na base do conflito. Embora
os bailes funks no Rio de Janeiro estejam bastante conectados com o ambiente
suburbano, os primeiros bailes foram realizados na Zona Sul, num equipamento cultural
consagrado como Canecão, pela apresentação de DJ’s que tocavam as músicas inéditas e
clássicas do soul e pop dos EUA (VIANNA, 2014). Após esse início, a direção do
Canecão visava “intelectualizar” este equipamente cultural, nesse sentido eles pararam
com a antiga programação black, tendo como efeito a expulsão dos bailes e sua rápida
transferência em busca de espaços de fruição nos bairros do subúrbio (VIANNA, 2014).
Os bailes são de diferentes tipos de funções, tem uma diversidade de público, de
estilo e se inserem numa dinâmica de territorialidade contribuindo para atribuição de
valoração das identidades dos jovens das periferias, assim como, movimentando uma
economia local. Ao se estabelecerem nos subúrbios, favelas e periferias o funk produz o
espaço, principalmente, ao permitir um estilo de vida, de convívio, de se vestir, de se
festejar, algo que os equipamentos e espaços centrais da cidade sempre negaram: “Os
funkeiros constroem seu estilo nas ruas – em especial nas de terra batida –, nas praias e,
principalmente, nos bailes” (HERSCHEMANN, 2005, p.128).
Essa primeira geração dos bailes funk se caracterizaram pela extrema
concentração em atividades na região metropolitana do Rio de Janeiro, principalmente
nas favelas dos morros, nas quais utilizavam quadras, ruas, escolas de samba para
socialização das festas, nesse momento também marcado por uma influência grande das
batidas vindas diretamente dos estilos do hip-hop dançante dos Estados Unidos (VAL;
OLIVEIRA, 2016). No trabalho histórico e antropológico de Hermano Vianna (2014,
p.24) sobre o retrato de organização desses primeiros bailes funks, à partir de uma visão
durkheimiana, identifica-se três elementos centrais que pudera notar como norteador de
um sentimento compartilhado entre os sujeitos que construíam e consumiam aquele
espaço do baile funk carioca: “1) superação das distâncias interindividuais; 2) produção
de um estado de efervescência coletiva; 3) transgressão de normas sociais”.
Desse modo, desde sua gênese, o funk, tendo nos bailes sua dimensão física de
manifestação territorial, se incorporou na sociedade brasileira como um gênero cultural
que se estabeleceu pelo conflito social no uso dos espaços urbanos, lutando por sua
legitimação pelo direito ao lazer e à cidade. Não por acaso à ida aos bailes reconstrói uma
tradição da cultura popular brasileira das classes mais oprimidas manifestarem em seus
espaços de moradia seus gostos, estilos e identidades. O próprio ritmo do funk propõe a
todo momento o contato, a troca, a expansão da área de manifestação. Uma batida que
pulsa, que fomenta a circulação no local, e que portanto não se restringe apenas à esfera
musical. Não apenas como espaço de transgressão e convívio, os bailes também
reproduziam elementos de competição, erotismo, humor, e uma ritualização da violência
(HERSCHMANN, 2005).
Essas formas de comunhão não ocorriam de maneira uniforme e com perfis
homogêneos, elas variavam à partir dos tipos de regramentos moralmente construídos
que ocorriam nos espaços com usos específicos, podemos classificá-los em 3 tipos: os
bailes de comunidade (gratuitos e onde se orientava a proibição de brigas entre os
presentes), os bailes usuais, e os bailes de corredor (esses dois últimos onde se notavam
mais brigas, e havia toda uma estrutura organizativa onde cada público teria que ficar, o
local das mulheres na pista de dança era definido antes dos eventos) (VAL;OLIVEIRA,
2016).
O funk portanto, diante toda sua complexidade, reproduz uma tradição da cultura
popular lutando por espaço de representação social. Chegamos portanto num ponto
interessante, a noção de que os espaços culturais no país, por muitas décadas ,esteve
vinculada ao ideário de equipamentos culturais tradicionais, que se propunham à uma
programação muito específica de linguagens, com viés artístico erudito. Assim, a noção
de espaço cultural, historicamente, sempre esteve submetida aos ditames do estado e do
mercado (ALBINATI, 2008 ). Sendo que estes sempre estiveram como ponto estratégico
de fundo representar o simbolismo da autoridade, nos termos como Certau (1995) coloca
– na realização do crível, do aceito, do autorizado.
Com o sucesso dos bailes funks nas comunidades do Rio de Janeiro, rapidamente
o gênero musical passou também a ganhar importância na indústria cultural, não que sua
produção estivesse verticalmente submetida a lógica de circulação das grandes produções
culturais, das gravadoras e da grande mídia, pelo contrário, isso ocorreu com muita
disputa, com diversas contradições, mas que se configuravam no seguinte sentido – o
funk aproveitava os interstícios das indústrias culturais para poder dar legitimidade
comercial ao gênero musical (HERSCHMANN, 2005; VIANNA, 2014). Assim, na
entrada de meados dos anos 90, o funk passaria por novas configurações temáticas,
expandindo-se para novos territórios geográficos, os bailes de comunidade, de corredor,
as temáticas das danças coletivas, dos melôs (VAL;OLIVEIRA, 2016) não sairiam
totalmente de cena, mas embarcariam novos elementos emergentes pelas condições
históricas e econômicas do momento de aprofundamento do neoliberalismo brasileiro.

Territorialidades contemporâneas do funk: dos rolezinhos aos pancadões.

Entre meados dos anos 90 e início dos anos 2000 há uma acentuação da crise
neoliberal no país, marcadas, principalmente, pelo desemprego e pelo baixo poder de
renda de amplas camadas das classes trabalhadoras. Na prática, a desestruturação
produtiva econômica, baseada na flexibilização da legislação trabalhista, foi ampliando
uma crise de graves proporções também nas relações sociais. Estas, cristalizadas pela
radicalização dos conflitos nos meios urbanos diante às desigualdades de renda expostas
e um estado mantenedor de viés autoritário. A violência urbana, passara portanto a ser
uma questão recorrente na realidade das grandes cidades , não que ela não existisse antes,
mas é nesse período que se extrapola naquilo que Dunker (2015) nomeia como a ebulição
do mal-estar à brasileira, a patologia do medo que possuía seus sintomas atrelados à
lógica de “condominização” da vida, tema tão explorado por filmes e músicas da época.
Importante retratar portanto, que do ponto de vista da produção simbólica da
cultura urbana, o antigo conceito de malandragem, elaborado por Antônio Candido e
Roberto da Matta, tinha sido envelhecido e modificado pela influência da violência que
atingia a sociedade. Portanto, haveria uma passagem da “dialética da malandragem” para
uma “dialética da marginalidade”, sendo que notadamente essa passagem deixaria as
manifestações culturais que expunham o ser “carnavalesco”, para estabelecer a figura do
sujeito “violento” (ROCHA, 2004)
Essa dinâmica social influencia a temática funk, principalmente, com o
aparecimento de um subgênero chamado “Proibidões” que tinha como intuito não mais
do uso da violência enquanto um rito, mas sim enquanto estabelecimento de uma prática
que revelava lógicas de identidade e de orgulho, presentes no cotidiano, num jogo
extremamente conflitivo que o meio urbano produzia.
A violência portanto, se estabelece como um marcador relevante ao atribuir a
coragem na construção da moralidade, é um elemento de distinção entre os membros da
comunidade, mas não só ele sozinho, a capacidade de consumo, o flerte e as
demonstrações de poder e afeto também denotariam novas configurações para
constituição dessa sociabilidade do funk (HERSCHMANN, 2005). É nesse contexto que
o funk se expande com mais proeminência no estado de São Paulo, à partir de sua
chegada na Baixada Santista, podemos colocar que a primeira geração do funk paulista
nasce abordando essas temáticas da violência e suas relações nos âmbitos locais
(VAL;OLIVEIRA, 2016).
Ao transcorrer da primeira década dos anos 2000, com uma virada também do
ponto de vista econômico, em que as camadas mais populares passariam a ter um acesso
maior a renda e aos padrões de consumo de bens duráveis, novas proposições entrariam
em cena no ambiente funk. Esse aparato de desenvolvimento do mercado de trabalho e
consumo interno, também se dava em direção à produção do espaço urbano, com o
advento de infraestruturas mínimas, até então historicamente renegados às populações
periféricas, como shoppings, grandes redes de supermercados, lojas filiais de marcas
populares, um processo de democratização altamente marcado por uma perspectiva de
acesso ao consumo.
Na cidade de São Paulo, emerge neste momento no funk a temática da ostentação,
nas quais as letras das músicas criavam um circuito cultural de exaltação das grandes
marcas, de relevar a importância do dinheiro para as conquistas do lazer e do luxo, tendo
assim, portanto, o acesso ao consumo como mecanismos de diferenciação social. Neste
circuito é impossível pensar o funk ostentação sem a articulação com a internet e os
fluxos de relações difundidas pelas redes sociais, tornando-se portanto, uma manifestação
cultural extremamente imagética, tendo o Youtube e outras plataformas virtuais, como
veículos de suas produções e divulgações, criando-se assim, toda uma cadeia produtiva
no setor audiovisual local dos territórios periféricos (PEREIRA, 2014).
Assim, nos grandes centros urbanos, entre os anos de 2013 e 2014, à partir do
sucesso do funk ostentação nas redes sociais e nos meios midiáticos tradicionais,
desenvolveu-se como forma de sociabilização dessa juventude, o uso de equipamentos
coletivos privados, principalmente shoppings, para a manifestação dos chamados
“rolezinhos”. Estes surgem à partir do encontro do cotidiano urbano dessa juventude
heterogênea e periférica, que demandava e disputava por locais de fruição para
autoafirmação de identidades e estilos de vida frutos do tempo histórico de ascensão de
renda. Deste modo, o rolezinho caracteriza-se como uma prática cultural marcada pela
ação de ouvir e cantar as músicas do funk em equipamentos comerciais, realizando o ato
ou a exaltação do consumo como meio de convívio e diferenciação. Imprimindo portanto
uma lógica dual, onde visava uma sociabilidade compartilhada pelo convívio de trocas de
experiências, mas ao mesmo tempo era uma prática que valorizava a exibição e a
competição entre os presentes como marcadores de poder.
Rolezinho enquanto prática social que visava uma disputa por espaço não é uma
sociabilidade inédita nas periferias urbanas brasileiras, ela tem uma trajetória histórica
referenciada nos “bondes” e “gangues”, carregadas, de todo modo, de elementos
constitutivos da dinâmica econômica contemporânea (PINHEIRO-MACHADO;
SCALCO, 2014). Alexandre Pereira (2014b) nota que um dos primeiros rolezinhos
anunciados nas redes sociais foi realizado num shopping da zona leste de São Paulo, o
Shopping Metro Itaquera em 2013 e que embora eles sempre escolhessem os shoppings
como foco de fruição, eles prefeririam estes equipamentos localizados nas periferias, ou
seja, é menos comum os rolezinhos em shoppings na região central ou de bairros mais
elitizados.
Num sistema de produção e reprodução social capitalista, os shoppings são
espaços que intensificam o comportamento de reificação do capital, sendo tratados
portanto como meios que emulam e criam moralidades de sacralização do consumo, ou
seja, um ambiente que carrega um ethos definido, específico para determinados públicos
e classes (MACHADO, 2015). Nessa lógica empregada ideologicamente há tanto tempo
no país, permitiu rapidamente uma reação dos setores médios, das elites, da mídia e do
estado por medidas protetivas, repressivas e de criminalização não apenas da prática em
si dos rolezinhos, mas também dos sujeitos jovens que nela se espelhavam. Basicamente,
os setores do estado e os proprietários dos shoppings, adotaram um recurso jurídico
chamado “Interditos Proibitórios” como forma de proibir estas práticas nos equipamentos
(SEVERI; FRIZZARIM; BORGES, 2015). Somado a isso, podemos colocar o uso do
aparato midiático comercial na criminalização da imagem destes jovens, assim como, a
criação de narrativas punitivistas por parte de políticos de direita.
O surgimento do pancadão enquanto modo de ocupação do espaço se configura
nesse ambiente em que os rolezinhos, diante o processo de criminalização, acabam
saindo de cena, dando sinais para novas demandas por sua territorialidade. Há portanto
uma passagem do uso de equipamentos coletivos de consumo para ocupação do espaço
público, tais como vias, praças, lotes abandonados. Somado a criminalização do
rolezinho, do ponto de vista comercial o funk ostentação não encontrava mais tanta
adesão nos meios digitais. A própria crise econômica sentida mais fortemente com o
desemprego à partir de 2015, foi dificultando o poder de compra da população, o que
pode ter afastado também a temática da ostentação.
O nome “pancadão” se configura nesses termos devido ao som alto, às pancadas
fortes que são expressas, principalmente, via potentes caixas de som dos carros
(ALMEIDA; MANTELLI, 2017). Na verdade, no período inicial do baile funk carioca, a
categoria “pancadão” já era empregada, era o estágio final do baile, se caracterizava com
esse nome, pois era o momento em que os dj’s tocavam as músicas mais animadas e
dançantes (HERSCHMANN, 2005).
O pancadão no processo de produção do espaço urbano, radicaliza o processo
anterior dos rolezinhos, pois disputa por uma ação prática, a ressignificação dos usos dos
territórios, adotando novas configurações para construção do espaço público e suas
formas de socialização. Certamente esse movimento é feita de forma extremamente
ruidosa e contraditória, os sons altos, a lotação das vias, por muitas vezes é relatada por
constrangimento para a vizinhança. De todo modo, é uma manifestação que revela o
cerne daquilo que Lefebvre (2001) apontava como luta pelo direito à cidade“ (…) uma
atividade criadora, de obra (e não apenas de produtos e bens materiais consumíveis),
necessidades de informação, de simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas”
(LEFEBVRE, 2001, p.105). Ocupar e transformar o uso do espaço é um meio de
consumir a música, não apenas numa tradição de contemplação, mas de transe coletiva, o
que é o eixo fundante da música popular do século XIX, algo teoricamente recente na
história da humanidade, onde o espaço das ruas, praças, equipamentos se constituem
como ambientes coletivos de convívio (VIANNA, 2014). Os pancadões retomam deste
modo o espírito intrínseco dos bailes de comunidade.

A cidade de Campinas-SP e a disposição territorial dos pancadões: criminalização e


produção do espaço

Através de um processo de marginalização promovido, principalmente, pela


grande mídia, o pancadão desde seu início ficou estereotipado como sendo um ponto de
violência, de consumo de drogas e práticas sexuais (PEREIRA, 2014b). Em geral, o funk,
como forma de socialização, há muito tempo sofre com mecanismos visando sua
criminalização, durante os anos 90, leis foram criadas no Rio de Janeiro proibindo a
realização dos bailes, chegando ao ponto do ano de 1995 ser realizado uma CPI
(Comissão Parlamentar de Inquérito) que visou investigar um suposto envolvimento com
o tráfico de drogas (CYMROT, 2011).
Logo quando os pancadões se tornam práticas frequentes nas ruas das cidades,
passam também por instrumentos de repressão e proibição. Para Danilo Cymrot
(2011) podemos citar ações da criminologia voltadas para área cultural, no ano de 2013
na cidade de São Paulo como a mudança da Lei do PSIU3, aumentando os decibéis pra
criminalizar o pancadão; e no ano de 2015 há também a aprovação da Lei Estadual nº
16.049/2015, norma que “dispõe sobre a emissão de ruídos sonoros emitidos por veículos
automotores” (SÃO PAULO, 2015).
Para além da capital São Paulo, podemos citar Campinas, no interior do estado e
sede da região metropolitana com mais de 3 milhões de habitantes 4, como uma das
primeiras cidades do país a elaborar uma legislação específica para os pancadões. A lei
municipal nº 14.862 de 25 de julho de 2014, também conhecida como “Lei do
Pancadão”, possui como principal pressuposto a seguinte norma:

Art. 1º Fica expressamente proibido a utilização de equipamentos de som


automotivo e equipamento sonoro de qualquer natureza, em qualquer tipo de
veículo automotor, estacionado nas vias públicas ou privadas e demais
logradouros do município, bem como em espaços privados de livre acesso ao
público, tais como postos de combustíveis e estacionamentos, com emissão de
sons ou ruídos em excesso, que possam perturbar o sossego público,
independentemente do nível de intensidade sonora, especialmente no horário
noturno.

Um detalhe importante dessa lei é que a mesma não se configura somente como
fiscalizadora do nível do som, mas sim, na proibição da realização de confraternização e
convívio que envolvam qualquer ambiente coletivo de uso de som em automóveis.
Portanto, a lei não específica o limite de decibéis do que é considerado como “sons ou
ruídos em excesso”. Aliás, já existe uma legislação nacional exclusiva seja no código
civil ou mesmo na constituição federal que regulamenta o nível de som nas vias, nos
prédios, na vizinhança, de modo, a garantir condições de usufruto contra transtornos
causados por sons e ruídos abusivos. Interessante notar nesse sentido, que o artigo 225 da

3 Podemos citar também a LEI Nº 15.777 de 29 de Maio de 2013 que visava proibir os veículos
estacionados em logradouros públicos ou espaços coletivos privados de “(…) emitir ruídos sonoros
enquadrados como de alto nível pela legislação vigente mais restritiva, provenientes de aparelhos de
som de qualquer natureza e tipo, portáteis ou não, especialmente em horário noturno” (SÃO PAULO,
2013, p.1).
4 Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE)
constituição federal que aborda sobre as condições de manutenção e preservação do meio
ambiente, é o mesmo que relaciona a questão da poluição sonora.
O som, portanto, é retratado como um problema do meio ambiente, uma poluição
que praticamente naturaliza as relações sociais, não retratando assim, o conteúdo, as
motivações, os contextos dessas produções sociais. Ao analisar o debate público da
Câmara Municipal de Campinas que debateu o tema do pancadão e sua proibição, um dos
autores da “Lei do Pancadão”, o vereador Rossini, relata categoricamente que baseou a
legitimidade da lei, à partir da questão de que essas formas de manifestação configuram-
se como crime ambiental. No mesmo evento, ele reafirma que existe uma legislação
nacional que incorre sobre o assunto, seja por infração nas leis de trânsito, seja pela
garantia do sossego, mas que estas não estavam sendo suficientes, havendo necessidade
de criação de mais um mecanismo de regulação.
Segundo o comentário do secretário de segurança pública de Campinas na
discussão na Câmara, o pancadão não é um fenômeno restrito aos automóveis, mas sim é
uma dinâmica que envolve o território em volta, pequenos comércios, bares, e portanto a
lei teria que ter essa compreensão ao ser implementada. O capitão da Policia Militar
presente na mesa de debate, vai além do meio-ambiente, e constata que o problema do
pancadão é que o mesmo gera um transtorno à saúde pública. Diante estes atores ligados
ao poder do estado, o pancadão, em todo o seu viés, deve ser tratado como um crime,
pois faz parte do universo de violência, de violar direitos de vizinhança, e como se ouviu
nos discursos do debate vai contra os preceitos ideológicos da família.
Para compreendermos como os pancadões se territorializam nas regiões de
Campinas, fizemos um pedido de requerimento, via Câmara Municipal da cidade,
destinado à Guarda Civil5. Neste documento foi solicitado o número de ocorrências dos
pancadões desde o início de implementação da lei 2015 até o presente momento,
delimitando esse número por bairros. Como forma de melhor relacionar ao escopo desse
paper, adotaremos o ano de 2019 para demonstrar o mapa dessas ocorrências, pois é o
último momento registrado antes da pandemia, o que pode revelar um dado mais real
diante as medidas restritivas que foram realizadas à partir de 2020.6

5 A responsabilidade por fiscalizar e autuar os pancadões é a Guarda Civil de Campinas, embora a lei
também compreenda que se possa realizar convênios com a PM para realizar essa função.
6 Com a pandemia, em 2020 a prefeitura anunciou a “operação pancadão” uma forte propaganda para
que a população denunciasse esses encontros, justificado pelo poder público municipal pelas
Os dados revelam que dentre cerca de 400 bairros existentes em Campinas-SP,
aproximadamente, 270 bairros tiveram ocorrências de pancadões, ou seja, 67,5 % do
território de Campinas. O número é extremamente expressivo, embora tenha que ser
interpretado que nem todas as ocorrências estejam vinculadas a um padrão no formato
baile ou algo mais coletivo, há diversas situações menores, restritas e pontuais, mas que
de toda forma revela um fenômeno que liga o som automotivo em vias como uma
manifestação comum e contínua no cotidiano de lazer na cidade. O próprio requirimento
elaborado pela guarda civil revela algumas especifidades da caracterização dessas
manifestações: a primeira é que a maioria dos atendimentos das ocorrências se realizam
nas vias públicas, embora também ocorram em alguns espaços coletivos privados, como
postos de combustíveis, estacionamentos, entre outros. Outro dado é que segundo os
guardas, o estilo musical mais consumido nesses locais de pancadão é o funk. Por fim,
apontam que embora não dê pra precisar estatisticamente, consideram que a imensa
maioria do público sejam jovens.
Referente a discriminação do número de ocorrências registradas por ano
(TABELA 1), torna-se importante relatar que embora a lei tenha sido aprovada em 2014,
ela foi sancionada e implementada de fato em 2015, tendo este ano como período base. O
ano com maior número foi em 2016, tendo uma queda progressiva de casos até 2019.
Não se sabe ao certo a motivação da queda, se ao trabalho de prevenção dos sistemas de
segurança, se por aumento da repressão7, ou mesmo de mudanças no hábito deste tipo de
manifestação espacial. Quando nos referimos ao termo “ocorrências”, não estamos
tratando de recebimento de denúncias advinda do público, mas sim de atos de pancadão
registrados e autuados pelo sistema de inteligência da Guarda Civil de Campinas.
Tabela 1 – Ocorrências de pancadão, por ano, em Campinas

Ano Registro de ocorrências


2015 1501
2016 1724
2017 1560
2018 1413
2019 1381
2020 3030
Fonte: Requerimento Guarda Civil, 2021

obrigatoriedades sanitárias de distanciamento social.


7 Embora não seja uma funcionalidade da Guarda, a intervenção por repressão, muitas dessas
ocorrências se dão em contexto conjunto de apoio da Policia Militar.
No ano de 2020, no mês de Junho, devido ao contexto de pandemia e as
indicações de isolamento e distanciamento social para Covid-19, a prefeitura da cidade
implementou uma ação denominada “Operação Pancadão”. A medida visava um
relevante investimento de propaganda, mobilizando a população a denunciar casos do
pancadão que avolumavam ocorrências de aglomeração social pelo município.
Rapidamente a ação também foi se concentrando na autuação de casos tidos como “festas
clandestinas”, muitas destas caracterizadas pela abertura proibida de bares, casas de
shows e chácaras. É nessa conjuntura que os números de 2020 crescem enormemente na
sequência histórica, ao ponto de passar o número de ocorrências somados dos anos de
2019 e 2018.
Nesse sentido, como forma de melhor retratar a realidade dos últimos anos,
adotaremos o ano de 2019 para analisar a territorialidade dos pancadões, focando nas
regiões com maiores incidências. O mapa elaborado tem como fonte de dados primários
números do Requirimento e foi formatado de maneira georreferenciada pelo software
livre QGIS. Campinas tem como parâmetro de divisão territorial, as prerrogativas legais
expostas pelo Plano Diretor (CAMPINAS, 2018), na qual divide o município em 17
áreas denominadas “Áreas de Planejamento e Gestão” (APGs), sendo que estas se
subdividem em 74 regiões denominadas “Unidades Territoriais Básicas” (UTBs) e
“Unidades Territoriais Rurais” (UTRs). Cada UTB ou UTR representam regiões maiores
que incluem diversos bairros. Como relatado, Campinas tem cerca de 400 bairros, como
as APGs, UTBs, e UTRs são o formato oficial da divisão do território, adotaremos essa
classificação nas fronteiras internas da cidade de Campinas.
A região com maior número de ocorrências de pancadão no município é o “Jd das
Bandeiras/ Jd São José”, Unidade Territorial Básica que engloba bairros como “Jd do
Lago II”, região também conhecida como Parque Oziel/Monte Cristo. Este é um
território marcado por um processo de produção urbana de luta pelo direito à moradia,
sendo considerada desde 1997 uma das maiores ocupações urbanas da América Latina.
Trata-se de um território com taxas altas de vulnerabilidade, segundo consultas no Atlas
de Desenvolvimento Humano no Brasil8, índice que engloba dados do censo relacionado
a renda, educação e longevidade. Localiza-se em um território com vias públicas,
drenagens, tratamento sanitário extremamente precários, com problemas logísticos de

8 Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/


acesso às outras regiões de Campinas pelo transporte público, o que dificulta a conexão
destes bairros com o entorno e a cidade como um todo (ALVES; JÚNIOR, 2013).

Mapa 1 – As 12 UTB’s com maiores ocorrências de pancadão no ano de 2019

Fonte: Elaboração própria, à partir dos dados do Requerimento.

As Unidades Territoriais Básicas com maiores índices de pancadão logo em


seguida à região do Pq Oziel são “Campo Grande/Jd. Florence” e “Jardim Maria Rosa/
Pq. São Paulo” que fazem parte respectivamente de territórios periféricos mais amplos
conhecidos como Campo Grande e Ouro Verde. Deste modo, nota-se que a maior
concentração de pancadões ocorre geograficamente numa região periférica no setor
sudoeste de Campinas.
Ainda referente ao mapa, para além de estabelecer um marcador de que os
pancadões só ocorrem em regiões periféricas é importante notar o fato das UTB’s
“UNICAMP/Cidade Universitária” no distrito de Barão Geraldo, e “Cambuí” bairro da
região central, serem os bairros de alta renda que aparecem na lista de maiores
ocorrências, porém com bem menos frequência se comparados com os outros setores
anteriormente relatados, Barão Geraldo com 14 e Cambuí com 16. Esses bairros mais
ricos da cidade se caracterizam também por serem zonas de lazer com muitos bares,
casas noturnas e equipamentos de entretenimento, o que certamente influencia o fato de
serem regiões que também acabam caindo em situações enquadradas na Lei do Pancadão.
Verifica-se portanto que o padrão de produção espacial dos pancadões se
concentra no setor sudoeste da cidade, local em que se encontra proporcionalmente um
número grande de habitantes da cidade, ao mesmo tempo, que se caracteriza pela
precarização da infraestrutura urbana, e no acesso a bens serviços coletivos. Por outro
lado, embora minoritário, existem ocorrências contínuas em bairros mais elitizados e que
se caracterizam por possuírem diversos pontos comercias de lazer, como Barão Geraldo e
Cambuí. O que demonstra um certo padrão similar de outras dimensões sociais do
processo de urbanização de Campinas, na qual a Rodovia Anhanguera (que corta a cidade
de sudoeste a noroeste) intervem simbolicamente como um divisor de águas entre duas
“cordilheiras”, a da riqueza e da pobreza):

A urbanização seletiva e excludente favoreceu a concentração da população de


mais alta renda ao norte da Rodovia Anhanguera, configurando assim uma
verdadeira “cordilheira da riqueza” em oposição à “cordilheira da pobreza”,
que se formou ao sul da rodovia, onde está concentrada grande parte da
população de baixa renda da região (CUNHA; FALCÃO, 2017, p.11)

Cultura urbana e conflito social

Ao retratar os processos de criminalização e criação cultural do funk, afasta-se


de uma noção de cultura como uma atividade consensual de determinado sistema único
de costumes, para se colocar como uma ação representada por contradições conjecturadas
por uma “(…) arena de elementos conflitivos (…)” (THOMPSON, 1998, p.17).
Como o processo de reprodução da segregação urbana numa cidade se dá em
condições contrastantes, numa disputa de interesses constante, nota-se que os pancadões
na cidade de Campinas territorializam-se nas zonas periféricas, pois representam práticas
sociais da cultura que tem dificuldades materiais de estrutura e constância de
programação no ambiente de institucionalização dos equipamentos e espaços culturais da
cidade. Nesse sentido se encontra às margens geográfica e simbólicas dos aparelhos tidos
como formais pelo estado ou mercado.
Essa produção de marginalidades produz novas culturas, podemos colocar então
que estas promovem duas direções: uma que se realiza de maneira alternativa à cultura
dominante e a outra que é opositora a mesma (WILLIAMS, 2011), ou seja, uma que
convive de maneira diferente com a ordem sistemática e institucionalizada e a outra que
combate o esquema produtivo dominante. Tanto uma, quanto outra, podem incorporar
duas formas de manifestação distintas: as culturas residuais, engendrariam elementos das
antigas tradições em suas práticas (por exemplo, dogmas da religião); as culturas
emergentes seriam as novas linguagens e sentidos produzidos por determinados sujeitos
coletivos (WILLIAMS, 2011).
Nesses termos estéticos da cultura do funk diante outras expressões musicais,
cabe então com base nas observações críticas acima expostas caminharmos sobre as
particularidades do popular e o método como, até os dias atuais, amplas parcelas da
sociedade e da produção do conhecimento apreendem uma série de valores do que é
considerado qualificado ou não qualificado culturalmente. Sendo assim é importante
considerar que:

A arte, com outras coisas (paisagens e roupas, mais evidentemente), dá prazer


estético, mas isso não pode ser transliterado como um senso de beleza ou um
senso da forma percebida, já que embora tais aspectos sejam centrais na função
estética, são histórica e socialmente variáveis, e, em todos os casos, concretos.
(WILLIAMS, 1978, p.153)

Para compreender esse movimento alinhado acima, consideramos que cultura


popular cumpre uma categoria fundamental para nossa interpretação contemporânea
junto às práticas sociais nos territórios, pois sua definição permite estar “(…) em uma
tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante”
(HALL, 2013, p.257), possibilitando em nosso estudo “(…) a vantagem de assinalar
aquilo que a ideologia dominante tem por finalidade ocultar, isto é, a existência de
divisões sociais (…)” (CHAUÍ, 1986, p.28). Em síntese, a cultura popular periférica do
funk expressada no pancadão, sem cair nos equívocos românticos, mas assegurando sua
essência concreta em uma situação definida, se mostra como uma “(…) concepção de
cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural” (HALL, 2013, p.257).
As identidades culturais desses sujeitos históricos na sociedade brasileira, dar-
se-ia, portanto, num terreno em disputa representada de um lado pelas periferias com
suas configurações sociodemográficas heterogêneas; e por outro pela produção
dominante burguesa, identificadas por uma dominação de centralidade e concentração
econômica. Esse ambiente de conflito, não se dava numa perspectiva apenas de
diferenciação da disposição dos acessos infraestruturais e aos bens de serviços, mas
também de um ponto de vista cultural. Em outras palavras, as manifestações simbólicas
nos territórios segregados da cidade seriam inseridas numa dinâmica de tentativas de
neutralização ou mesmo criminalização. Diante essa realidade, a manifestação da cultura
popular brasileira, na atualidade, ganha contornos como manifestações culturais
periféricas, pois:

(…) o princípio estruturador do ‘popular’ neste sentido são as tensões e


oposições entre aquilo que pertence ao domínio central da elite ou da cultura
dominante, e à cultura da ‘periferia’. É essa oposição que constantemente
estrutura o domínio da categoria da cultura do ‘popular’ e do ‘não-popular’ ’’
(HALL, 2013, p.256)

O alcance do popular, deste modo, ficaria entre uma ação que luta pela
manutenção de suas práticas e outra que revindica sua alteração pela imposição de
conhecimento. Em síntese, cairia naquilo que Stuart Hall (2013) aponta como a dialética
de entendimento de cultura popular marginal entre contenção/resistência.

Considerações finais

Esse paper pretendeu abordar, à partir do funk enquanto um gênero musical


cotidiano, a produção de suas territorialidades no último tempo histórico e as marcas da
marginalização como constituinte das práticas periféricas. Se formos puxar um tracejar
da cultura popular urbana moderna, desde o samba, passando pelo hip-hop e o funk,
notamos que elas empreendem processos de conflito que deixam marcam ainda presente
na organização dos terrtórios de nossas cidades. São expressões que passaram e passam
por um violento processo em busca de legitimição, de encontro de afirmação de
identidades.
Nesse sentido, notamos com o desenvolvimento deste trabalho, que o pancadão
pode ser uma prática que significa a continuidade dos rolezinhos, mas agora amplamente
enraizados no espaço público, em vias, praças,etc. Tal movimento pode ter ocorrido por
dois motivos: a criminalização dos rolezinhos e pela crise econômica do consumo nos
últimos anos.
Desta maneira, a manifestação da cultura produzida em dado território, sob
influência também da indústria cultural, estaria sujeita à uma dinâmica dual de “tradição
seletiva”, em que haveria uma apuração incorporando determinadas práticas das culturas
tradicionais dominantes, ao mesmo tempo que constituí novos sentidos para aquela
linguagem; e a de formulação de “novas culturas”, ou seja, as práticas que iriam contra a
tradição estabelecida, identificada por aquilo que estivesse fora do oficial e do
corporativo (WILLIAMS, 2011). Portanto, embora parte da literatura coloque no hip-hop
como gênero tido como consciente engajado e opositor, o funk, mesmo imbuído de outra
forma de temática e convívio, acaba sendo também uma cultura alternativa a lógica
posta. Isso ocorre pois é nesta manifestação cultural, nas condições postas em nosso
tempo histórico, que mais sofrem com a criminalização e marginalização.
Há uma lógica da transgressão como algo inerte nas relações sociais das
juventudes, tendo o funk como uma prática jovem que visa romper uma invisibilidade
territorial e social (CALDEIRA, 2014). Esses rompimentos se relacionam com o meio
econômico e social em volta, há portanto uma mudança do entendimento de “vida loka”
do rap dos Racionais focado na complexidade engaja do sujeito periférico, para o sentido
do termo “vida loka” que no Funk Ostentação do MC Rodolfinho, música “Como é Bom
Ser Vida Loka”, explora o termo como o lazer e festa que o consumo promove.
Torna-se importante assim, aprofundar estudos empíricos e teóricos sobre esse
movimento pela luta em usufruto da cidade enquanto obra e criação de lazer, sendo que
estes sujeitos “(...) em diferentes espaços urbanos, apresentam-se hostis e dispostos a
lutar pelo seu espaço, pelo seu direito à Cidade.” (HERSCHMANN, 2005, p.180). Seria
então o funk a expressão musical que melhor representa a emancipação cultural pelo
direito à cidade? É esse um dos desafios de análise dos estudos culturais do Brasil nos
dias de hoje.
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